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14.10.08

Trinta anos esta noite


Eles se encontraram ao som de Erik Satie. A música que tocava era a Gymnopedie, numa vitrola antiga. Na redação, havia uma grande mesa de madeira, uma máquina de escrever Underwood velha, duas Olivetti um pouco mais modernas, algumas cadeiras, muito papel e edições passadas de um periódico que fazia relativo sucesso naquela cidade.
Quando se viram pela primeira vez, seus olhos conversaram. Sorriram, ela um sorriso de menina, inocente. Ele, algo mais, pois já podia perceber naqueles olhos rútilos e naquela boca sensual de adolescente a mulher que ali se descortinava. Ainda não sabiam que, às vezes, a maior viagem é a distância entre duas pessoas. E o tempo que leva para se encontrarem.
Erik Satie tocava naquela redação todos os dias. E quando o som do piano ecoava pela rua, naquela época ainda calçada de paralelepípedos, ela sabia que era o sinal para o seu passeio vespertino. E não escondia sua vontade de vê-lo.
Um dia, passou pela frente da redação ainda com seu uniforme e a bolsa da escola a tiracolo. Não resistiu. Entrou. Queria saber quem tocava, porque sua tia era pianista e tinha comentado sobre a vitrola da redação, sempre com a mesma música, Gymnopedie 1.  A conversa o fez perceber que aquela menina tinha algo mais para dizer, que parecia vir do fundo do seu coração. 
Seus olhos se encontraram de novo, dessa vez mais próximos. Fez menção de beijá-la, mas parou imediatamente. Seus colegas de trabalho acabavam de voltar da padaria, onde tinham ido tomar o cafezinho da tarde. 
Explicou que aquela música, composta por um autor francês, lhe dava inspiração para escrever contundentes artigos políticos e suas famosas crônicas semanais que, cada vez mais, eram consumidas por leitores cansados da mesmice plástica dos outros jornais.  Ela a achava meio triste. Ele gostava da melancolia das notas musicais, que lhe fertilizava a inspiração. 
“Triste? A gente é que escolhe quando quer ser triste. Pode ser interpretada de uma outra maneira, como, por exemplo, num momento de contemplação e reflexão por um amor raro e impossível, que algum dia o destino possa fazer possível. Um amor raro como o seu!”
  Os dias frios e a ventania que assolavam a cidade naquele outono, mais do que fazê-la ficar em casa, a traziam de volta à redação, lembrando-se do momento do quase-beijo e, por desculpa ou por curiosidade, escutar música clássica enquanto ele escrevia em sua Underwood. 
Aproveitava para ler jornais antigos, pesquisar no dicionário alguma palavra difícil e, naquela grande mesa, fazia também sua tarefa de casa.
Ficaram amigos, trocavam olhares significativos, amantes não poderiam ser naquele momento. Os grilhões de uma sociedade cobradora os deixava escravos do moral. Ela, uma menina saudável, bonita, leve, desejando descobrir o amor. Ele, um adulto profissional com contas a prestar para a polícia política que sempre censurava seus artigos e que, por mais de uma vez o tinha levado para esclarecimentos.
Ela ainda não alcançava o tamanho do problema que o afligia, inocente natural, admiradora incondicional e por isso ficou chocada quando chegou na redação e ele não estava. Nesse dia, a música de Erik Satie não ecoou pelo bairro. Seus amigos disseram que, dessa vez, ele iria demorar muito para voltar. E estavam empacotando os utensílios e acessórios da redação, quando chegou a vez da vitrola e dos discos que ele tanto gostava. Sem cerimônia, pediu para guardá-los em sua casa, acrescentando que ela e sua tia também eram fãs do compositor. 
Dois anos se passaram. Na prisão, deixou a barba crescer e aparentava uma certa tristeza quando a encontrou casualmente no calçadão da praia. Tristeza que logo se transformou em alegria naquela noite. Ela deu uma desculpa para as amigas e foi vê-lo. Decidiram passear pela areia, deixando que a água do mar viesse molhar os seus pés. Ele comentou, durante o breve passeio, que no período em que esteve preso, pensou muito nela, no seu olhar, em suas mãos delicadas e a saudade o fazia achar que algo mais forte tinha invadido o seu ser. A perda de si mesmo, durante os momentos mais difíceis, o fazia se reencontrar quando pensava nela e na sua gostosa juventude. 
Ela comentou que o toca-discos tinha ficado com sua tia, e que, por força dos estudos, teve que mudar para outra cidade. Adorou que o destino os tivesse colocado de novo juntos no mesmo caminho.
O beijo que os uniu foi forte demais. O que tinha brotado no coração daquela jovem era verdadeiro, ele sentia, e não tiveram outra alternativa. Amaram-se, nas areias da sua praia predileta, numa noite de lua e cheia de estrelas. Lá ficaram até ao amanhecer. Depois disso, nunca mais se viram. 
Faz trinta anos esta noite! Para esses dois sonhadores, que acabam de se achar de novo, é como se tivesse tudo acontecido ontem. A viagem de volta que os une, ainda traz as notas consistentes da música que primeiro os conectou. Um amor nascido antes do tempo, que finalmente encontra seu tempo. Percebem, agora, que o carinho e admiração que têm um pelo outro são a menor distância para o reencontro, nessa contagem regressiva tão especial.

(Para uma pessoa muito querida)




Um comentário:

rosanic@terra.com.br disse...

Uma sugestão: os poemas de D. Rafisa são mergulhados em extrema sensibilidade e ternura, e seriam muito bem-vindos se você publicasse mais alguns, compartilhando-os com seus leitores.